Friday, June 03, 2005

Sem pudor, sem pecado, sem remorso.

20

(Cheira intensamente a maçãs na antiga sala de bilhar. Estão espalhadas por todo o lado: no chão, no pano verde, dentro de cestos e canastras. Ia dizer: dentro de ti. Porque é também o teu cheiro: não só a madressilva e às ervas das areias, mas a maçã camoesa, reineta, bravo de esmolfe. Aqui brincámos, quando pequenos, aos cavalinhos e às casinhas. Mais tarde a outros jogos. Alguns, por certo, chamar-lhes-iam eróticos. Eu digo castos. Jogos castos, ainda que perigosos.
Despe-te, pedes, um certo fim de tarde, era Julho, tenho a certeza que era Julho pela tonalidade de luz e sombra que a essa hora se coalhava num dos cantos da sala de bilhar. Não há pudor entre nós. Obedeço. Ficas a olhar para mim.
- Está empinado, dizes, agarrando-me o sexo com a mão direita. Que nome lhe vou chamar? É grosso e duro, palpita como um pássaro ou como um coração. É assim mesmo que lhe vou chamar: meu coração.
- Quero ir contigo. - Diz outra vez.
- Quero ir contigo.
-Não, a palavra, diz só a palavra que não se diz, diz a palavra de que eu gosto.
Mas eu não digo.
- É uma palavra branca e vermelha, quando tu a dizes eu vejo um véu de noiva e vejo sangue.
- Quero ir contigo, insisto.
Mas tu já estás a divagar. Começas a dançar, fazendo gestos largos, como se agitasses invisíveis véus. Assim te despes, devagar, dançando sempre. É a primeira vez que te vejo nua, completamente nua, posso mesmo dizer que estás nua por fora e por dentro, não é só o teu corpo que me mostras, é algo mais, alguns diriam alma, eu não sei como dizer, sei que está dentro e és tu, a tua nudez é uma nudez espiritual.
- Dá-me um beijo na boca, dizes.
Eu beijo-te. Sabes a maçã, a Julho, talvez a Deus. Por mais estranho que pareça, apetece-me rezar.
- Agora beija-me aqui – e apontas o teu sexo.
Eu assim faço.
Sem pudor, sem pecado, sem remorso.
Estamos nus na sala de bilhar, é Julho, posso jurar que é Julho, dizemos palavras proibidas que pelo modo como as dizemos são santas e sagradas, os nossos gestos são castos, talvez perigosos, mas castos, ou, pelo menos, inocentes. Estamos nus, é Julho. E o espírito de Deus, se Deus existe, paira de certeza sobre nós.)


Manuel Alegre
In. «A Terceira Rosa»

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