Wednesday, June 08, 2005

O Cais da Vida

… Tinha chegado ao limite dos excessos, ao lugar onde só reside a condição divina ou apenas cabe a alma ausente, e o que verdadeiramente lhe apetecia era mergulhar uma vez por todas nesse apelativo mar de mistério e sedução, nem que tivesse depois de morrer afogada nas ondas do pânico e do remorso.

- Quereis vestir isto? - perguntou D. Fernando, num tom baixinho, exibindo uma ousada camisa de seda que fora retirar a um gavetão da cómoda.

- Vossa alteza acha que é preciso? - respondeu ela no mesmo tom desafiador, emocionado, antes de caminhar para ele com a irreprimível leveza de uma carícia de luar.

Junto à cama, sobre a qual se espraiavam nuvens de suaves sombras, os dois amantes permaneceram de pé por algum tempo, com os corpos envolvidos num só, tremendo no movimento de giestas sopradas pelos ventos de Outono, olhando-se surpreendidos como se temessem ou não soubessem merecer o destino que se lhes rendeu naquela hora de luxo e fantasia. Com a ponta dos dedos febris, o monarca penteou os cabelos da dama descaídos sobre os olhos, de seguida fê-los deslizar pelo rosto, pelo pescoço, pelo cume dos seios, e por aí abaixo, em círculos delirantes, num ousado curso de procura e reconhecimento.

- Estais a deixar-me perdida, meu senhor – segredou.

- E é do vosso agrado, distinta dama?

- Não digais nada, alteza.

Tinha chegado a hora definitiva, absoluta, esse momento sideral em que os dois amantes, colados por um abraço à volta da cintura, se deixaram cair sobre o leito, num arrebatamento de paixão intensa. Com os lábios esmagados por um beijo em fogo, Leonor Teles começou a desenhar com o dedo da mão tremente a fronteira dos dois corpos, numa viagem sem urgências nem defeitos. Aos poucos, ele foi-se arrastando em sentido descendente, voltou a beijar-lhe os lábios, o pescoço, com a língua alisou-lhe os seios em sobressalto, e depois, sempre depois, mergulhou a cabeça entre as coxas dela, lisas e perfeitas. O cais da vida.

Assustados com a intensidade dos minutos de esplendor que parecia brotar do coração da eternidade, nem um nem outro conseguiram interromper por um só instante aquela vasca de águas de maré viva, violentas e trágicas, e já no fim, no requebro desse bem-aventurado sofrimento, Leonor partiu a noite numa convulsão intensa com o grito da vitória, o grito inicial, um grito que não era o dela mas o do princípio do mundo.

Horas mais tarde, já na ponta da madrugada, o rei e a dama acordaram entre as colchas de púrpura, em total desalinho, abraçados e nus como dois pobres à procura de conforto e de agasalho.

JOSÉ MANUEL SARAIVA
In. «ROSA BRAVA»

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