Thursday, September 08, 2005

Uma fragrância adocicada, ordinária, almiscarada...


Através da escuridão e do rendilhado das árvores, distinguíamos os arabescos das janelas iluminadas, que, retocadas pelas tintas coloridas da memória sensitiva, me parecem agora cartas de jogar – talvez porque um jogo de bridge mantinha o inimigo ocupado.

Ela estremeceu e contorceu-se quando lhe beijei o canto dos lábios entreabertos e o lobo quente da orelha. Um cardume de estrelas brilhava palidamente por cima de nós, entre as silhuetas das folhas finas e compridas, e aquele céu vibrante parecia tão nu como ela estava, sob o vestido leve. Vi o seu rosto reflectido no céu, com uma nitidez extraordinária, como se emitisse uma ténue radiância. As suas pernas, as suas pernas encantadoramente vivas, não estavam muito unidas, e, quando a minha mão encontrou o que procurava, gravou-se-lhe nas feições infantis uma expressão sonhadora e misteriosa, em que havia prazer e dor.

Estava sentada num plano um pouco mais elevado do que eu e, sempre que o seu êxtase solitário a impelia a beijar-me, inclinava a cabeça com um movimento sonolento, suave e lânguido, quase angustiado, e os seus joelhos nus prendiam e apertavam o meu pulso, para o libertarem em seguida. A sua boca trémula, franzida pela acidez de qualquer misteriosa poção, aproximava-se do meu rosto e sustinha a respiração, num hausto sibilante. Tentava, primeiro, apaziguar o sofrimento do amor comprimindo violentamente os lábios ressequidos contra os meus; depois, a minha amada afastava-se e sacudia nervosamente o cabelo, para a seguir se aproximar de novo, sombriamente, e me deixar beber a vida na sua boca aberta, enquanto, com uma generosidade disposta a oferecer-lhe tudo – o coração, a garganta, as entranhas –, eu lhe dava a segurar na mão inexperiente o ceptro da minha paixão.

Recordo-me do perfume de um pó-de-arroz qualquer – creio que o roubou à criada espanhola da mãe –, uma fragrância adocicada, ordinária, almiscarada. Confundia-se com o seu próprio odor a pãezinhos frescos, e os meus sentidos ameaçaram, subitamente, romper todas as barreiras.

Um ruído inesperado, numa moita próxima, impediu-nos de transbordar, e, enquanto nos desenlaçávamos e, de veias latejantes, doridas, esperávamos ver aparecer, talvez, um gato vadio, ouvimos, vinda de casa, a voz da mãe dela a chamá-la, num crescendo frenético – e o Dr. Cooper apareceu no jardim, a coxear pesadamente. Mas o bosquete de mimosas, a névoa de estrelas, o frémito, a chama, a seiva e a dor ficaram comigo, e aquela rapariguinha de membros tisnados pela praia e língua ardente nunca mais deixou de me perseguir – até que, vinte e quatro anos depois, quebrei o seu encanto ao encarná-la noutra.

Vladimir Nabokov
In. «Lolita»