Thursday, June 09, 2005

Estais a Ir pelo Caminho Errado

Em quase dez anos de vida no Paço de São Martinho, era a primeira vez que a rainha impunha uma desconcertante medida cautelar, espécie de recolher obrigatório, que os mais espertos, e não eram poucos, facilmente perceberam. Perceberam e calaram.

Por volta da meia-noite, hora a que os residentes dormiam já, Leonor saiu silenciosamente do quarto para ir, encontrar-se com o ansioso João Fernandes Andeiro nos aposentos dele.

- Senhor conde – sussurrou, logo que abriu o ferrolho da porta.

- Entrai, bendita dama, entrai!

Com as mãos a tremer e o coração a pulsar descontroladamente, o conde lançou-se na direcção da rainha, segurou-a com força pela cintura e esmagou-lhe a boca com um beijo antes de a conduzir a um canto do quarto – o sítio mais escuro da divisão.

- Morreria de pranto se hoje não me acontecesse vossa-alteza.

Sorridente, Leonor Teles tocou os lábios do homem com a ponta de um dedo, de modo a sugerir-lhe que se mantivesse discreto e calado. E alisou-lhe os cabelos despenteados.


Por momentos, João Fernandes Andeiro ficou sem saber como actuar. Apeteceu-lhe levá-la logo para a cama, despi-la e amá-la com a intensidade com que sempre a sonhara, mas teve medo que ela reagisse mal a tanta urgência. Por isso, e porque era um homem previdente e experimentado, deu tempo ao tempo, ocupou uma cadeira e, com a delicadeza acostumada, sentou a rainha no colo. Durante longos minutos, os dois amantes enterneceram-se em demorados beijos e regaladas carícias. De vez em quando ele deixava escapar um gemido, esticava e encolhia as pernas, enquanto ela, ia ajustando as ancas à forma do pousadouro.


- Que estais a fazer, senhor conde?

João Fernandes Andeiro tinha levantado já o volumoso vestido da rainha e feito descair as suas próprias calças até aos pés.

- Oh, formosa senhora!

- Calai-vos, por amor de Deus! - aconselhou ela, ao mesmo tempo que voltava a ajeitar a posição do seu corpo contra o regaço rígido do amante.

O silêncio nos aposentos era então quase absoluto.

- Cuidado, senhor conde, cuidado. Estais a ir pelo caminho errado – queixou-se a soberana, a certa altura.

Indiferente ao aviso, o galego prosseguiu o seu propósito, segurando firmemente as nádegas da rainha de modo a facilitar o respectivo ajuste e impedir que ela se levantasse a meio do trajecto.

- Farei a coisa devagar – prometeu, num tom murmurado.

Apoiada com uma mão no joelho do homem e com a outra num móvel do quarto, junto à parede, Leonor Teles esforçava-se para controlar a dor e o prazer. Só que o prazer era infinitamente menor que a dor. Então pegou na ponta do vestido e mordeu-o com força.

- Estais a magoar-me, gentil senhor. Tirai, tirai isso que desfaleço.

- Pronto, alteza – murmurou o conde, feliz e aliviado.

- O que tinha a doer, já doeu.

Leonor Teles sempre se revelara um espírito aberto à luxúria e fantasia, sempre se deliciara no pecado do vício e da carne, mas nunca lhe havia passado pela cabeça que algum dia viesse a dar-se a um homem no jeito em que acabara de se dar. Talvez por isso, no fim do acto, a soberana tenha abandonado à pressa e sem palavras os aposentos de Andeiro, deixando o conde estupefacto, ainda de calças caídas, preso à cadeira do consolo dele e da tortura dela.

José Manuel Saraiva
In. «Rosa Brava»

Wednesday, June 08, 2005

O Cais da Vida

… Tinha chegado ao limite dos excessos, ao lugar onde só reside a condição divina ou apenas cabe a alma ausente, e o que verdadeiramente lhe apetecia era mergulhar uma vez por todas nesse apelativo mar de mistério e sedução, nem que tivesse depois de morrer afogada nas ondas do pânico e do remorso.

- Quereis vestir isto? - perguntou D. Fernando, num tom baixinho, exibindo uma ousada camisa de seda que fora retirar a um gavetão da cómoda.

- Vossa alteza acha que é preciso? - respondeu ela no mesmo tom desafiador, emocionado, antes de caminhar para ele com a irreprimível leveza de uma carícia de luar.

Junto à cama, sobre a qual se espraiavam nuvens de suaves sombras, os dois amantes permaneceram de pé por algum tempo, com os corpos envolvidos num só, tremendo no movimento de giestas sopradas pelos ventos de Outono, olhando-se surpreendidos como se temessem ou não soubessem merecer o destino que se lhes rendeu naquela hora de luxo e fantasia. Com a ponta dos dedos febris, o monarca penteou os cabelos da dama descaídos sobre os olhos, de seguida fê-los deslizar pelo rosto, pelo pescoço, pelo cume dos seios, e por aí abaixo, em círculos delirantes, num ousado curso de procura e reconhecimento.

- Estais a deixar-me perdida, meu senhor – segredou.

- E é do vosso agrado, distinta dama?

- Não digais nada, alteza.

Tinha chegado a hora definitiva, absoluta, esse momento sideral em que os dois amantes, colados por um abraço à volta da cintura, se deixaram cair sobre o leito, num arrebatamento de paixão intensa. Com os lábios esmagados por um beijo em fogo, Leonor Teles começou a desenhar com o dedo da mão tremente a fronteira dos dois corpos, numa viagem sem urgências nem defeitos. Aos poucos, ele foi-se arrastando em sentido descendente, voltou a beijar-lhe os lábios, o pescoço, com a língua alisou-lhe os seios em sobressalto, e depois, sempre depois, mergulhou a cabeça entre as coxas dela, lisas e perfeitas. O cais da vida.

Assustados com a intensidade dos minutos de esplendor que parecia brotar do coração da eternidade, nem um nem outro conseguiram interromper por um só instante aquela vasca de águas de maré viva, violentas e trágicas, e já no fim, no requebro desse bem-aventurado sofrimento, Leonor partiu a noite numa convulsão intensa com o grito da vitória, o grito inicial, um grito que não era o dela mas o do princípio do mundo.

Horas mais tarde, já na ponta da madrugada, o rei e a dama acordaram entre as colchas de púrpura, em total desalinho, abraçados e nus como dois pobres à procura de conforto e de agasalho.

JOSÉ MANUEL SARAIVA
In. «ROSA BRAVA»

Friday, June 03, 2005

Liturgia de Sagração

13

Agora estão sentados junto ao tanque, ela começa por se descalçar, tira os sapatos a Xavier, molha-lhe os pés, ajoelha-se e enxuga-os com os cabelos, enquanto diz:
Eu sou Maria, irmã de Marta.
Então agarra-o, olha para ele muito séria, encosta-lhe a boca ao pulso, fica assim muito tempo. De repente morde-lhe, Xavier grita, ela aperta-lhe a ferida com a mão, depois devagar, muito devagar, olhando sempre para ele com gravidade, bebe o sangue que escorre do pulso por si mordido.
Outros dirão o que quiserem. Para mim não há dúvida: é um rito, uma liturgia de sagração e encantamento.

Manuel Alegre
In. «A Terceira Rosa»

Sem pudor, sem pecado, sem remorso.

20

(Cheira intensamente a maçãs na antiga sala de bilhar. Estão espalhadas por todo o lado: no chão, no pano verde, dentro de cestos e canastras. Ia dizer: dentro de ti. Porque é também o teu cheiro: não só a madressilva e às ervas das areias, mas a maçã camoesa, reineta, bravo de esmolfe. Aqui brincámos, quando pequenos, aos cavalinhos e às casinhas. Mais tarde a outros jogos. Alguns, por certo, chamar-lhes-iam eróticos. Eu digo castos. Jogos castos, ainda que perigosos.
Despe-te, pedes, um certo fim de tarde, era Julho, tenho a certeza que era Julho pela tonalidade de luz e sombra que a essa hora se coalhava num dos cantos da sala de bilhar. Não há pudor entre nós. Obedeço. Ficas a olhar para mim.
- Está empinado, dizes, agarrando-me o sexo com a mão direita. Que nome lhe vou chamar? É grosso e duro, palpita como um pássaro ou como um coração. É assim mesmo que lhe vou chamar: meu coração.
- Quero ir contigo. - Diz outra vez.
- Quero ir contigo.
-Não, a palavra, diz só a palavra que não se diz, diz a palavra de que eu gosto.
Mas eu não digo.
- É uma palavra branca e vermelha, quando tu a dizes eu vejo um véu de noiva e vejo sangue.
- Quero ir contigo, insisto.
Mas tu já estás a divagar. Começas a dançar, fazendo gestos largos, como se agitasses invisíveis véus. Assim te despes, devagar, dançando sempre. É a primeira vez que te vejo nua, completamente nua, posso mesmo dizer que estás nua por fora e por dentro, não é só o teu corpo que me mostras, é algo mais, alguns diriam alma, eu não sei como dizer, sei que está dentro e és tu, a tua nudez é uma nudez espiritual.
- Dá-me um beijo na boca, dizes.
Eu beijo-te. Sabes a maçã, a Julho, talvez a Deus. Por mais estranho que pareça, apetece-me rezar.
- Agora beija-me aqui – e apontas o teu sexo.
Eu assim faço.
Sem pudor, sem pecado, sem remorso.
Estamos nus na sala de bilhar, é Julho, posso jurar que é Julho, dizemos palavras proibidas que pelo modo como as dizemos são santas e sagradas, os nossos gestos são castos, talvez perigosos, mas castos, ou, pelo menos, inocentes. Estamos nus, é Julho. E o espírito de Deus, se Deus existe, paira de certeza sobre nós.)


Manuel Alegre
In. «A Terceira Rosa»

Thursday, June 02, 2005

Cheira-me

12

Ou então, é tempo de o dizer, comendo ameixas debaixo da ameixoeira mágica e única, ainda lá está. Cláudia espremia o sumo para a mão, esfregava a cara de Xavier, depois vinha lambê-lo, boca com boca, língua com língua. Parecem duas cobras, dizia ela. Não era um beijo. Ou era mais que um beijo. Era, como dizer?, uma espécie de liturgia ou sagração, Cláudia bebia em Xavier o sumo das ameixas, ele bebia nela o seu próprio sumo, que não era senão o sumo do Verão, esse milagre. Talvez se deva também dizer: por vezes Cláudia fazia coisas estranhas. Alguns dirão – quase obscenas. É mais certo dizer: sagradas. Se não repare-se, ela despe-se e pede:
- Cheira-me.
Depois pergunta:
- A que é que eu cheiro?
Xavier responde:
- A madressilva.

Manuel Alegre
In. «A Terceira Rosa»