Wednesday, October 26, 2005

Beijámo-nos e Possuímo-nos Como Dois Inimigos

Saímos do quarto e descemos a escada. Gino tinha passado o braço em torno da minha cintura e beijávamo-nos em cada degrau. Creio bem que nunca uma escada foi descida tão devagar. No rés-do-chão, Gino abriu uma porta disfarçada na parede, e estreitando-me e beijando-me sempre conduziu-me à cave. Já era noite: estava tudo às escuras. Sem acender a luz, ao longo do corredor, muito abraçados e de bocas unidas, chegámos ao quarto de Gino. Ele abriu, entrámos, e ouvi-o fechar a porta atrás de nós. Durante muito tempo ficámos de pé, beijando-nos no escuro. Eram beijos que nunca mais acabavam: se eu queria interromper ele recomeçava, e quando ele parava era eu quem continuava. Depois Gino empurrou-me para a cama e eu deixei-me cair de costas. Gino não cessava de me murmurar ao ouvido, um pouco ofegante, palavras doces e frases convincentes, com a intenção clara de me aturdir, para não me aperceber de que ao mesmo tempo as suas mãos me iam despindo. Mas não era preciso; primeiro porque eu decidira entregar-me, e depois porque eu odiava estes trapos que tanto me tinham agradado antes, e que desprezava agora profundamente.

«Uma vez nua – pensava eu – serei tão bela, senão mais, do que a patroa de Gino e que todas as mulheres ricas do mundo.» Aliás, havia meses que o meu corpo esperava este momento; sentia-o, mau grado meu, fremir de impaciência e de desejo reprimido, como uma fera esfomeada e presa, à qual, depois de um longo jejum, se cortam as prisões e se oferece com que matar a fome. Foi por isso que o acto de amor me pareceu natural, e a sensação de fazer um gesto desusado de modo nenhum se misturava ao prazer físico. Pelo contrário, como acontece por vezes diante de uma certa paisagem que se tem a impressão de já ter visto, quando na realidade é a primeira vez que se oferece ao nosso olhar, eu tinha a sensação de fazer coisas que já tinha feito, não sabia onde nem quando, talvez numa outra vida. Isto não me impedia de amar Gino com paixão, para não dizer com fúria, de o beijar, de o morder, de o apertar nos meus braços até o sufocar. Ele parecia possuído da mesma raiva. Assim, durante um tempo que me pareceu muito longo, neste quartinho escuro, enterrado debaixo de dois andares de uma casa vazia e silenciosa, nós beijámo-nos e possuímo-nos como dois inimigos lutando pela própria vida e procurando ferir-se o mais possível.

Alberto Maravia

In. «A Romana»

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